É um fato conhecido que uma das preocupações mais recorrentes da humanidade é estudar a própria natureza, a forma como nossa essência funciona e afeta o ambiente ao redor e como modifica seus próprios portadores na medida em que interagimos, construímos e evoluímos como indivíduos e sociedade.
Você, leitor, pode me
questionar sobre o que exatamente estou chamando de “natureza humana”, pois é
de fato uma expressão bastante subjetiva. É, no entanto, uma expressão que pode
nos ajudar a visualizar algumas características que possuímos enquanto animais
e, mais especificamente, algumas outras que possuímos enquanto humanos.
Uma vez que estivermos
diante de tais particularidades, o próximo passo é entender como elas funcionam
e o quanto estão sob o nosso controle. Medo, agressividade, egoísmo, pretensão,
desconfiança: serão essas qualidades inatas à humanidade, algo que com a
evolução do pensamento foi domado para agir de acordo com a racionalidade e
aprisionado em uma caixa, ou que continua espreitando pelas correntes,
aguardando uma oportunidade?
Como disse anteriormente,
uma das preocupações dos pensadores, filósofos, biólogos, psicólogos etc.
sempre foi a de tentar compreender como a chamada “natureza humana” de fato
funciona, e isso naturalmente se refletiu na literatura, que constantemente
retrata e faz críticas à maneira como os seres humanos se comportam em
situações de crise e momentos extremos.
O texto que você está lendo
nasceu de uma idéia que tenta unir duas obras de escritores de estilo
totalmente diferente, mas que possuem uma “pegada” comum no que diz respeito a analisar
o indivíduo e o que ele fará se for pressionado e levado ao limite. As duas obras
em que esse ensaio se baseia descrevem precisamente uma resposta muito verídica
como resultado desta pressão, e nos mostra como supostamente é a essência de um
ser humano, o quão ruim ela pode se manifestar, deixando-nos um questionamento
no mínimo perturbador: essa é realmente a nossa identidade?
As obras em questão são o
romance Ensaio Sobre a Cegueira, de
José Saramago e o conto O Nevoeiro,
de Stephen King, assim como suas respectivas adaptações cinematográficas que
certamente podem ser úteis ao leitor que tiver interesse em ver de maneira mais
concreta os conceitos que discutiremos neste artigo. Abaixo vocês podem conhecer
uma pequena sinopse de ambos:
Ensaio
sobre a Cegueira:
A
cegueira começa num único homem, durante a sua rotina habitual. Quando está
sentado no semáforo, este homem tem um ataque de cegueira, e é aí, com as
pessoas que correm em seu socorro que uma cadeia sucessiva de cegueira se
forma… Uma cegueira, branca, como um mar de leite e jamais conhecida,
alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O governo decide agir, e as
pessoas infectadas são colocadas em uma quarentena com recursos limitados que
irá desvendar aos poucos as características primitivas do ser humano. A força
da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo e depressa o mundo
se torna cego, onde apenas uma mulher, misteriosa e secretamente manterá a sua
visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando
visualmente todos os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, obediência,
ganância, carinho, desejo, vergonha.
O
Nevoeiro:
Quando
um misterioso nevoeiro cerca uma cidade do Maine, um grupo de pessoas se vê
preso dentro de um supermercado. Logo eles percebem que estranhas criaturas
estão a espreita dentro do nevoeiro. Um pai e seu filho, uma mulher
voluntariosa, uma senhora e mais um grupo de pessoas lutam para manter a
sanidade, enquanto uma fanática religiosa começa a pregar que se trata do fim
do mundo, e aos poucos vai encontrando seguidores. Quanto mais tempo ficam
presos, mais os sobreviventes ficam a mercê dos monstros. Mas é possível, no
entanto, que a maior ameaça esteja entre eles mesmos.
Há, certamente, uma
semelhança óbvia entre ambos: cidades que sofrem com catástrofes sobrenaturais
e sem explicação, deixando os personagens à mercê do imprevisível e do
desconhecido. Este fenômeno sem precedentes que ocorre em ambas histórias é, no
entanto, a alavanca que gerou este texto, pois ele nos permite observar um
efeito bastante curioso construído exemplarmente por Saramago e King, um efeito
que é sumariamente gerado pelo medo e
pela insegurança.
Mas medo de que?
O primeiro desafio para
esses personagens é a insegurança por terem sido privados das regalias
fornecidas pela sociedade evoluída e contemporânea: segurança, alimento, fonte
de energia e calor, água, conhecimento e a garantia de que a realidade é
absoluta. Ou seja, o que se passa diante deles não deveria ser possível. Na
história desses personagens, tais recursos praticamente deixaram de existir ou
não estão mais sob fácil acesso. Nesse caso, o que vai acontecer?
Biologicamente falando,
podemos afirmar que a tendência do Homem quando privada de sua propriedade e
suposto direito é recorrer a um comportamento animalesco. Isso significa que
qualidades como solidariedade, bom humor, confiança e racionalidade quase
sempre dão lugar a agressividade, sentimento de posse e dominação, intolerância
e desconfiança.
Em seguida vem a segunda
parte do efeito, causada pelo medo. Já inseguros e paranóicos por nos vermos
sem acesso aos recursos da sociedade com que estamos acostumados, sentimos medo
do que está acontecendo e medo do desconhecido que se apresenta. Em Ensaio Sobre a Cegueira, a perda da visão de toda a população
estabelece pânico total, pois não se pode saber sua origem, procedência ou se
irá retornar em algum momento. Medo de não voltar a ver. Medo de ser apunhalado
pelas costas, ou roubado, ou de estar sendo manipulado, medo da perda da privacidade.
Em O Nevoeiro, há o pavor pela
própria névoa que domina toda a região e das criaturas que nela habitam, pois
todos sabem que eventualmente elas irão invadir o supermercado, assim como
sabem que a única maneira de encontrar ajuda ou maior segurança é
aventurando-se do lado de fora.
Este duplo efeito seria
supostamente um reflexo da verdadeira natureza do ser humano quando privado de
sua segurança, o que significa que somos animais e respondemos como tal.
Saramago nos mostra isso através de uma cegueira global que surge e desaparece
sem explicação, enquanto King traz criaturas vindas de outra dimensão através
de um portão criado por um experimento militar mal sucedido. Tramas diferentes,
mas que no entanto impulsionam a mesma faceta em seus respectivos personagens.
Até aí a ciência pode contar
sem problemas. Porém, um lado interessante desta idéia é que, apesar de
retornar a uma espécie de estado selvagem e animalesco, o personagem utiliza o
que vamos chamar de “modificadores contemporâneos” para fortalecer e
personalizar a sua reação agressiva e primitiva.
Um dos principais dos tais
modificadores, ainda que mais presente na obra de King, é a religião. Em O Nevoeiro, das pessoas enclausuradas
dentro do supermercado encontramos uma personagem extremamente religiosa, capaz
de expressar isso de maneira enérgica e que acaba influenciando os demais a seu
favor, através de um discurso que prega o nevoeiro e seus monstros como uma
espécie de castigo divino. Isso mais para frente atinge níveis críticos quando
os “convertidos” da personagem em questão rapidamente se tornam capazes de
matar os demais que não concordam com ela. Quando falamos de reação primitiva e
um regresso às nossas raízes animalescas através do medo não teríamos a
religião como um fator predominante, mas aqui isso efetivamente acontece. Por
que? Através dos séculos descobrimos que o ser humano é um animal. E através
dos séculos construiu-se uma crença no desconhecido e no sobrenatural para
explicar o universo. Poderíamos afirmar que agora não apenas somos animais, mas
que também temos uma tendência a atribuir isto à religião (qualquer que seja),
culpando-a ou esperando dela uma espécie de salvação por mérito? É possível que
além da religião, podemos incorporar outros traços culturais do mesmo tipo e
utilizá-los como modificadores em situações extremas?
Podemos agora amarrar esta
idéia à uma outra, utilizando o texto do senhor Saramago para ilustrar o que
discutimos até agora. Em Ensaio Sobre a
Cegueira, todos os personagens “contaminados” pela repentina perda de visão
vão sendo trancados em uma área de quarentena com comida e recursos limitados,
supostamente para serem distribuídos igualmente. Acontece que conforme o lugar
vai se tornando mais populoso, a disparidade demanda X disponibilidade vai se
tornando maior. É aí que alguns dos cegos formam um grupo e começam a roubar a
comida assim que ela chega ao local, sem dar chance para que seja distribuída,
e depois estabelecem preços para que as pessoas consumam. Logo, começam a pedir
que as mulheres de todas as alas da quarentena sejam enviadas até eles para
satisfazê-los sexualmente em troca de comida.
Além disso, em determinado
momento da história alguns dos protagonistas fogem do complexo e voltam à
cidade, só para descobrir (com a ajuda da única que ainda conserva sua visão)
que o caos se estabeleceu totalmente, que as pessoas defecam nas ruas,
assaltam, matam, saqueiam.
É a lei do mais forte sobre o
mais fraco. A lei da sobrevivência selvagem. Uma coisa muito presente na
natureza, mas que aqui (e também no conto de King) foi temperada com
características bastante humanas, como chantagem, malícia etc.
As duas obras que selecionei
para discutir nesse texto são de autores que admiro, e exemplos interessantes
de como a literatura gosta de retratar e explorar as maneiras com que a
humanidade se manifesta em diferentes situações. É possível que mesmo após
centenas, milhares de anos de evolução, não somos capazes ainda de controlar a
nossa essência selvagem que sempre tende a ser egoísta, agressiva e violenta
quando colocada sobre pressão e privada de seus privilégios modernos? Essa
pergunta é o clímax do texto, que escrevi na tentativa de expressar e dialogar
com vocês sobre o link que pode-se fazer entre os dois livros. Naturalmente,
existem exemplos — tanto na literatura como na realidade — que superam este
questionamento. Nas próprias histórias que usei como base, há personagens
capazes disso.
No entanto, podemos confiar
que o Homem avança em direção à sanidade absoluta, ou será que mesmo com a
racionalidade avançada que nos caracteriza como “superiores”, o pequeno animal
que se esconde nas profundezas primitivas da mente ainda pode vir a tomar o
controle em um colapso mundial, como o retratado nessas histórias?
FONTES PARA SINOPSE E OUTRAS INFORMAÇÕES:
Livro: Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago – 1995
Livro: A Tripulação de Esqueletos, Stephen King, 1995;
Conto: O Nevoeiro, 1985
Filme: O Nevoeiro, Frank Darabont, 2007 – Adaptação de
conto homônimo
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