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30 de setembro de 2015

Ensaio - A Literatura de Edward Bunker e os Habitantes do Submundo




O assunto sobre a situação carcerária do país e principalmente sobre a figura do indivíduo que comete crimes dentro da sociedade já é foco de atenções desde muito tempo atrás no Brasil — citando as célebres palavras “bandido bom é bandido morto” — e tem ganhado ainda mais destaque ultimamente com a ajuda da mídia e programas no estilo de telejornais da tarde que se ocupam quase que totalmente na comunicação de crimes e afins, quase sempre aplicando alcunhas enfaticamente pejorativas para se referir ao delinqüente enquanto o mesmo aparece na telona com o rosto coberto pela camiseta sendo levado por policiais que dão declarações mansas e agradáveis.

Esse, naturalmente, é um cenário já conhecido por milhões de brasileiros que diariamente acompanham os tais “jornalistas” na missão de mostrar a tentativa de “limpar” a nossa sociedade de sujeitos que causam a barbárie: matam, roubam, estupram.
Até aqui tudo funciona de acordo com o manual. No entanto, se cutucarmos uma pequena reflexão a respeito da relação causa-efeito e pensarmos de maneira mais ampla, é possível que exista uma pequena janela de possibilidades capaz de reverter todo esse quadro “mídia/polícia = bom” e “bandido = ruim”.

Edward Bunker é um escritor norte-americano, ex-presidiário e cuja bibliografia trata de um assunto bastante peculiar que geralmente se retém nos lugares mais sombrios, alvo de muito tabu e muita polêmica. Qual é, afinal, o ponto de vista do criminoso? O que o motiva? Qual é a tentativa por parte da sociedade de transformá-lo num indivíduo apropriado e qual a recepção posterior dessa mesma sociedade para este novo indivíduo?


Um dos livros do autor — Fábrica de Animais — publicado em 1977, retrata a relação entre dois personagens — Earl e Ron — dentro de um presídio norte-americano e, entre outras coisas, discute um possível plano de fuga para ambos enquanto a trama se desenrola. Embora a maior parte de suas obras trabalhe os mesmos tipos de reflexão, esta particularmente nos oferece uma oportunidade ímpar, pois ainda que se passe num país estrangeiro, pode quase que perfeitamente ser aplicada à realidade brasileira contemporânea.

Um dos principais — talvez o maior deles — tópicos que Bunker desenvolve em seus romances é o funcionamento interno de uma penitenciária. Mais importante: o seu funcionamento do ponto de vista dos habitantes. Ao longo da narrativa, descobrimos pelos olhos do narrador ou personagens que muito do que rola dentro desse lugar aparentemente está fora do conhecimento da maior parte do público, incluindo guerras raciais, preconceitos de muitas naturezas diferentes, abuso sexual, abuso de autoridade, violência, assassinato, roubo, desrespeito e toda sorte de coisas que podem ser compreendidas pela inteligência humana. É comum ouvirmos discussões sobre quem aprova ou não a pena de morte, ou sobre a super lotação dos presídios brasileiros, ou até mesmo sobre a situação dos funcionários dos presídios brasileiros. Normalmente, esses são os focos de bate papo a respeito do assunto por parte da população em geral e também por parte da mídia. Não se fala sobre o indivíduo presidiário.

“Leva de um a dois para que a singularidade da prisão se desgaste de modo que sua realidade horrível possa se infiltrar. Homens que cometem suicídio o fazem ou na primeira erupção de vergonha, dentro de dias ou semanas, ou então depois de uns dois anos, quando tudo se revelou destituído de esperança. Nesse ínterim [...] ele experimenta a excitação, a excitação de lidar com uma sociedade fechada [...]”

É importante frisar que o objetivo desse texto é unicamente introduzir e estimular a discussão a respeito de como tratamos os nossos presos, como é a figura deles dentro da sociedade e suas possibilidades além da sala do tribunal. O site não prega nenhum tipo de ideologia pró-criminalidade e não expressa tendências políticas. Usando como base o autor que escolhi para trabalhar o assunto, é certamente válido que ao menos utilizemos o cenário descrito por ele para pensarmos a função real das nossas próprias penitenciárias. Será que elas existem apenas como jaulas e matadouros em potencial ou, como diz o discurso pseudo-moralista do governo, como “centros de reabilitação”?

O dia-a-dia dentro do sistema carcerário raramente é algo que passa pela cabeça do cidadão comum, que apenas está feliz em saber que esse pessoal que infringiu a lei se encontra em um lugar muito desagradável e, mais importante, a uma distância muito grande. A palavra “reabilitação”, que faz referência à missão de tornar o criminoso alguém apropriado para conviver em sociedade, passa longe da realidade. Não existem programas que realmente promovem a reabilitação e, quando existem, são mal gerenciados. Não há investimento de lugar algum para financiar profissionais preparados — e não guardas penitenciários que “quebram o galho” — para lidar com o público dos presídios, que muitas vezes até teria potencial. Essencialmente, apenas os jogamos lá dentro para cumprir um número X de anos de pena, sujeitos a um processo que irá possivelmente torná-los piores do que quando entraram.


“[...] Ron desconfiou em silêncio, pois via Paul como alguém inteligente e talvez competente em crimes menores, mas tão completamente deficitário em perspicácia e autocontrole que o fracasso em qualquer outra coisa era inevitável [...] Em seguida, porém, Paul demonstrou um discernimento que Ron não teria suspeitado — Talvez um em cada dez mil saia e consiga isso, ser aceito, entrar para a... — Ele fez um gesto com dois dedos de cada mão para indicar aspas — classe média. Mas a sociedade nunca perdoa ou esquece o resto de nós. Ela nos deixará ser livres desde que aceitemos ser uns bostas. Ela deixará você engraxar sapatos ou lavar carros ou fritar hambúrgueres. Isso para ex-condenados brancos. Imagine o que é ser negro e ex-condenado, e provavelmente analfabeto [...]”

É claro que não podemos idealizar uma utopia onde todo preso estará absolutamente disposto a cooperar e se tornar bonzinho e construtivo. Entretanto, apesar das óbvias exceções que virão a surgir, a psicologia e o serviço social já mostram com dados estatísticos que há uma margem positiva que certamente justificaria o investimento e o trabalho necessários.

Saindo do universo carcerário, voltamos para o mundo aqui fora e para a nossa sociedade de pessoas limpas e corretas. O ex-presidiário, já manchado pelo resto da vida e piorado pelo ambiente que experimentou em seus X anos de pena, volta para as ruas já sofrendo um preconceito automático — primeiro da população e depois do mercado. Não consegue emprego. É barrado em órgãos como SPC, não pode prestar concurso público, tem dificuldade para retomar os estudos ou, quando os tem finalizados, encontra problemas para ingressar em universidades.


Muitos personagens de Bunker enfrentam essas dificuldades. Eles, naturalmente, são construídos para serem criminosos e não se importam. Mas antes de oferecer a trama — bem construída, escrita de maneira leve e objetiva — o autor dialoga muito com a idéia de que o indivíduo que deixa um presídio está inserido em uma nova categoria de cidadão que não é misturada com a comum. Existe preconceito, existe segregação, existe opressão. E isso muitas vezes acontece na mesma proporção tanto para o serial killer quanto para o homem pobre que rouba comida para os filhos. O preconceito geralmente surge nos valores tradicionais da sociedade e se manifesta em todos os aspectos da mesma. Isto, aliado ao preconceito, não considera questões como origem carente, pobreza, falta de acesso à educação, negligência política e social e muitas outras atitudes que — apesar das muitas opiniões que insistem no contrário — podem influenciar uma personalidade criminosa.

E finalmente temos a força policial, o símbolo prático da opressão e do controle de pragas, garantia do cidadão de que o controle foi mantido. A violência praticada pela polícia muitas vezes supera a que acontece dentro das penitenciárias. Esse comportamento violento, obviamente, alimenta uma reação semelhante que acaba se proliferando posteriormente. Em longo prazo, pode ter uma importância considerável. Ainda que os policiais muitas vezes sejam obrigados a utilizar de tais recursos e arrisquem suas vidas constantemente, são inúmeros os casos de abuso de autoridade (com ênfase na palavra abuso) com moradores de rua, crianças, grupos de sem teto ou desprovidos de um mínimo de condição humana. Ironicamente, praticam o inverso da missão da polícia, que é promover segurança. Comportamento esse que ultrapassa os muros de concreto dos presídios e se repete também em organizações com a Fundação Casa, onde a necessidade de um projeto de reabilitação realmente comprometido é ainda mais intensa.

Edward Bunker, como citado anteriormente, é ex-presidiário e viveu todas as situações discutidos no texto, o que lhe deu muita matéria prima para escrever as obras que sustentam a sua carreira de escritor. Carreira essa que foi, na época, muito improvável, visto que ele tentou publicar seu primeiro livro enquanto ainda cumpria pena e levou muito tempo para encontrar espaço e credibilidade suficientes para que o manuscrito saísse dos muros. Certamente a sua literatura possui certa qualidade e é valida como leitura, recomendação essa que faço aqui e que também pretendo fazer posteriormente em outras resenhas do tipo. No entanto, é de mais valioso que tiremos de sua narrativa os elementos utilizados como os tijolos da trama, visualizando-os no nosso dia-a-dia e levando essa discussão para um panorama mais aprofundado que vise não a construção de fábricas de animais, como sugere o título de um de seus livros, mas a um lugar que tenha a capacidade de criar novos seres humanos.


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