O assunto sobre a situação
carcerária do país e principalmente sobre a figura do indivíduo que comete
crimes dentro da sociedade já é foco de atenções desde muito tempo atrás no
Brasil — citando as célebres palavras “bandido bom é bandido morto” — e tem
ganhado ainda mais destaque ultimamente com a ajuda da mídia e programas no
estilo de telejornais da tarde que se ocupam quase que totalmente na
comunicação de crimes e afins, quase sempre aplicando alcunhas enfaticamente
pejorativas para se referir ao delinqüente enquanto o mesmo aparece na telona
com o rosto coberto pela camiseta sendo levado por policiais que dão
declarações mansas e agradáveis.
Esse, naturalmente, é um
cenário já conhecido por milhões de brasileiros que diariamente acompanham os
tais “jornalistas” na missão de mostrar a tentativa de “limpar” a nossa
sociedade de sujeitos que causam a barbárie: matam, roubam, estupram.
Até aqui tudo funciona de
acordo com o manual. No entanto, se cutucarmos uma pequena reflexão a respeito
da relação causa-efeito e pensarmos de maneira mais ampla, é possível que
exista uma pequena janela de possibilidades capaz de reverter todo esse quadro “mídia/polícia
= bom” e “bandido = ruim”.
Edward
Bunker é um escritor norte-americano, ex-presidiário e cuja
bibliografia trata de um assunto bastante peculiar que geralmente se retém nos
lugares mais sombrios, alvo de muito tabu e muita polêmica. Qual é, afinal, o
ponto de vista do criminoso? O que o motiva? Qual é a tentativa por parte da
sociedade de transformá-lo num indivíduo apropriado
e qual a recepção posterior dessa mesma sociedade para este novo indivíduo?
Um dos livros do autor — Fábrica de Animais — publicado em 1977, retrata
a relação entre dois personagens — Earl e Ron — dentro de um presídio
norte-americano e, entre outras coisas, discute um possível plano de fuga para
ambos enquanto a trama se desenrola. Embora a maior parte de suas obras trabalhe
os mesmos tipos de reflexão, esta particularmente nos oferece uma oportunidade
ímpar, pois ainda que se passe num país estrangeiro, pode quase que
perfeitamente ser aplicada à realidade brasileira contemporânea.
Um dos principais — talvez o
maior deles — tópicos que Bunker desenvolve em seus romances é o funcionamento
interno de uma penitenciária. Mais importante: o seu funcionamento do ponto de
vista dos habitantes. Ao longo da
narrativa, descobrimos pelos olhos do narrador ou personagens que muito do que
rola dentro desse lugar aparentemente está fora do conhecimento da maior parte
do público, incluindo guerras raciais, preconceitos de muitas naturezas
diferentes, abuso sexual, abuso de autoridade, violência, assassinato, roubo,
desrespeito e toda sorte de coisas que podem ser compreendidas pela
inteligência humana. É comum ouvirmos discussões sobre quem aprova ou não a
pena de morte, ou sobre a super lotação dos presídios brasileiros, ou até mesmo
sobre a situação dos funcionários dos presídios brasileiros. Normalmente, esses
são os focos de bate papo a respeito do assunto por parte da população em geral
e também por parte da mídia. Não se fala sobre o indivíduo presidiário.
“Leva
de um a dois para que a singularidade da prisão se desgaste de modo que sua
realidade horrível possa se infiltrar. Homens que cometem suicídio o fazem ou
na primeira erupção de vergonha, dentro de dias ou semanas, ou então depois de
uns dois anos, quando tudo se revelou destituído de esperança. Nesse ínterim
[...] ele experimenta a excitação, a excitação de lidar com uma sociedade
fechada [...]”
É importante frisar que o
objetivo desse texto é unicamente introduzir e estimular a discussão a respeito
de como tratamos os nossos presos, como é a figura deles dentro da sociedade e
suas possibilidades além da sala do tribunal. O site não prega nenhum tipo de
ideologia pró-criminalidade e não expressa tendências políticas. Usando como
base o autor que escolhi para trabalhar o assunto, é certamente válido que ao
menos utilizemos o cenário descrito por ele para pensarmos a função real das
nossas próprias penitenciárias. Será que elas existem apenas como jaulas e
matadouros em potencial ou, como diz o discurso pseudo-moralista do governo,
como “centros de reabilitação”?
O dia-a-dia dentro do
sistema carcerário raramente é algo que passa pela cabeça do cidadão comum, que
apenas está feliz em saber que esse pessoal que infringiu a lei se encontra em
um lugar muito desagradável e, mais importante, a uma distância muito grande. A
palavra “reabilitação”, que faz referência à missão de tornar o criminoso
alguém apropriado para conviver em sociedade, passa longe da realidade. Não
existem programas que realmente promovem a reabilitação e, quando existem, são
mal gerenciados. Não há investimento de lugar algum para financiar
profissionais preparados — e não guardas penitenciários que “quebram o galho” —
para lidar com o público dos presídios, que muitas vezes até teria potencial.
Essencialmente, apenas os jogamos lá dentro para cumprir um número X de anos de
pena, sujeitos a um processo que irá possivelmente torná-los piores do que
quando entraram.
“[...]
Ron desconfiou em silêncio, pois via Paul como alguém inteligente e talvez
competente em crimes menores, mas tão completamente deficitário em perspicácia
e autocontrole que o fracasso em qualquer outra coisa era inevitável [...] Em
seguida, porém, Paul demonstrou um discernimento que Ron não teria suspeitado —
Talvez um em cada dez mil saia e consiga isso, ser aceito, entrar para a... —
Ele fez um gesto com dois dedos de cada mão para indicar aspas — classe média.
Mas a sociedade nunca perdoa ou esquece o resto de nós. Ela nos deixará ser
livres desde que aceitemos ser uns bostas. Ela deixará você engraxar sapatos ou
lavar carros ou fritar hambúrgueres. Isso para ex-condenados brancos. Imagine o
que é ser negro e ex-condenado, e provavelmente analfabeto [...]”
É claro que não podemos
idealizar uma utopia onde todo preso estará absolutamente disposto a cooperar e
se tornar bonzinho e construtivo. Entretanto, apesar das óbvias exceções que
virão a surgir, a psicologia e o serviço social já mostram com dados
estatísticos que há uma margem positiva que certamente justificaria o investimento
e o trabalho necessários.
Saindo do universo
carcerário, voltamos para o mundo aqui fora e para a nossa sociedade de pessoas
limpas e corretas. O ex-presidiário, já manchado pelo resto da vida e piorado
pelo ambiente que experimentou em seus X anos de pena, volta para as ruas já
sofrendo um preconceito automático — primeiro da população e depois do mercado.
Não consegue emprego. É barrado em órgãos como SPC, não pode prestar concurso
público, tem dificuldade para retomar os estudos ou, quando os tem finalizados,
encontra problemas para ingressar em universidades.
Muitos personagens de Bunker
enfrentam essas dificuldades. Eles, naturalmente, são construídos para serem
criminosos e não se importam. Mas antes de oferecer a trama — bem construída,
escrita de maneira leve e objetiva — o autor dialoga muito com a idéia de que o
indivíduo que deixa um presídio está inserido em uma nova categoria de cidadão
que não é misturada com a comum. Existe preconceito, existe segregação, existe
opressão. E isso muitas vezes acontece na mesma proporção tanto para o serial
killer quanto para o homem pobre que rouba comida para os filhos. O preconceito
geralmente surge nos valores tradicionais da sociedade e se manifesta em todos
os aspectos da mesma. Isto, aliado ao preconceito, não considera questões como
origem carente, pobreza, falta de acesso à educação, negligência política e
social e muitas outras atitudes que — apesar das muitas opiniões que insistem no
contrário — podem influenciar uma personalidade criminosa.
E finalmente temos a força
policial, o símbolo prático da opressão e do controle de pragas, garantia do
cidadão de que o controle foi mantido. A violência praticada pela polícia
muitas vezes supera a que acontece dentro das penitenciárias. Esse
comportamento violento, obviamente, alimenta uma reação semelhante que acaba se
proliferando posteriormente. Em longo prazo, pode ter uma importância
considerável. Ainda que os policiais muitas vezes sejam obrigados a utilizar de
tais recursos e arrisquem suas vidas constantemente, são inúmeros os casos de
abuso de autoridade (com ênfase na palavra abuso)
com moradores de rua, crianças, grupos de sem teto ou desprovidos de um mínimo
de condição humana. Ironicamente, praticam o inverso da missão da polícia, que
é promover segurança. Comportamento esse que ultrapassa os muros de concreto
dos presídios e se repete também em organizações com a Fundação Casa, onde a
necessidade de um projeto de reabilitação realmente comprometido é ainda mais
intensa.
Edward Bunker, como citado
anteriormente, é ex-presidiário e viveu todas as situações discutidos no texto,
o que lhe deu muita matéria prima para escrever as obras que sustentam a sua
carreira de escritor. Carreira essa que foi, na época, muito improvável, visto
que ele tentou publicar seu primeiro livro enquanto ainda cumpria pena e levou
muito tempo para encontrar espaço e credibilidade suficientes para que o
manuscrito saísse dos muros. Certamente a sua literatura possui certa qualidade
e é valida como leitura, recomendação essa que faço aqui e que também pretendo
fazer posteriormente em outras resenhas do tipo. No entanto, é de mais valioso
que tiremos de sua narrativa os elementos utilizados como os tijolos da trama, visualizando-os
no nosso dia-a-dia e levando essa discussão para um panorama mais aprofundado
que vise não a construção de fábricas de animais, como sugere o título de um de
seus livros, mas a um lugar que tenha a capacidade de criar novos seres
humanos.
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